Ano da exposição: 2012
O ESPAÇO SILENCIOSO DE MARIA LEONTINA
Cristina Burlamaqui
Maria Leontina, na sua lógica singular, aparentemente contraditória, é dona de uma constância pictórica sem igual. Sua voz nos conduz a um universo fluido, etéreo, a uma verdade verdadeira e, ao mesmo tempo, se mostra muito ampla, embora com consistência sempre silenciosa e tímida. Sua obra carrega uma aspiração artística precisa, desvinculada da urgência moderna de uma arte capaz de reconciliar toda a dualidade entre o figurativo e o abstrato, num diálogo silencioso de extrema delicadeza em “devaneios tranquilos”, retirados dos ensinamentos de Gaston Bachelard. Assim, é mister revisar esta obra pictural significativa da história da arte brasileira que ainda procura legitimidade e não está livre de novas descobertas.
Pensar o legado de Maria Leontina implica o desafio de investigar sua poética, revisar seu vasto vocabulário plástico, revisitar obras que criam um universo único.
Sempre de acordo com sua personalidade tímida e retraída, com densa carreira solitária e determinação metódica, Maria Leontina não rejeita nenhuma impulsão criativa de dupla indeterminação para engendrar os fluxos de como percebemos o mundo e construímos nosso conhecimento e articulamos as memórias. Não se trata da simples aplicação de um sistema de proporções matemáticas pensadas a priori, mas sim de um movimento vibrante que mostra intuição e sensualidade na gênese de seus trabalhos. Mesmo nas telas mal acabadas a artista se revela, não como ícone imaculado, mas como autora de uma plasticidade que acalma.
Sua veia criativa se firma em um lirismo poético sempre além da emoção quase mística e da melancolia metafísica. Encontra-se no advento da contracultura, pois transita por estilos e linguagens em que faz uma operação crítica perante o legado moderno, e se mantém em sua veracidade em que o enigma se dá no jogo entre figuração e abstração, sem conflitos.
Paulista de nascimento, de família tradicional, Maria Leontina inicia-se nas artes nos anos 1940 e em 1949 se casa com o pintor carioca Milton Dacosta, a quem admira pelo rigor metódico da pintura. Em 1952, em viagem a Paris com bolsa de estudos, entra em contato com as tendências abstrato-geométricas e, claro, traz esta experiência para sua obra. Enquanto Dacosta realiza uma redução formal de geometria rigorosa, beirando a “pura abstração”, Leontina, em sua fase construtiva dos anos 1950 (séries Os Jogos, Os Enigmas, Da Paisagem e Do Tempo) não se reduz ao universo físico da pintura de estruturas nem na teoria rígida dos jogos matemáticos, nem na representação abstrata do mundo, mas no tempo da invenção, do real encontro com o mundo, quando a composição é determinada e indeterminada pelos signos poéticos justapostos, em contraste e deslocados em relação uns aos outros, em diferentes ritmos de cor.
A cor é o equilíbrio visceral de sua composição pictórica. É na cor que seu trabalho se coloca e se distingue, com tons e semitons e o fundo da tela – em seu interior mais abstrato – e na construção de transparências de maneira que os planos de cor continuem a vibrar sobre os outros, numa soma absoluta de real e irreal no domínio espiritual da pintura. Com a harmonia dos azuis, por exemplo, ela permeia com alguma ansiedade certo número de paralelas, planos retangulares, triângulos justapostos nos jogos de nuances. Na intensidade dos tons (azuis, ocres, marrons terrosos) demonstra toda a dimensão dos planos, evidenciando a qualidade única e maior de sua obra. No olhar da cor reside sua qualidade primordial e resumo de toda sua poética.
Leontina se aproxima da arquitetura dos Castelinhos de Dacosta, mas sua construção é mais lírica, despojada da teoria racionalista do construtivismo. A simples forma de linguagem que conduz Dacosta às estruturas dos Castelos e ritmos transportados em formas pontuais, em Leontina se desfaz na cor, que possui tempo e vida próprios. Os estados subjetivos de experiência com a cor vêm carregados de ritmos simbólicos e de alegorias da memória, quando o visceral e a matéria carregam significação intuitiva e imaginativa do visível e se determinam na cor da emoção que os harmoniza. A evidência da cor é o principal elemento, o peso da vitalidade da pintura de Leontina.
Como Dacosta, ela desenvolveu uma poética de geometria na pintura que, nela, remete e contrapõe às construções musicais de Paul Klee. E, em vez de seguir as discussões e regras do concretismo, se refugia em uma pintura única, de linguagem especial. Mostra-se adepta da geometria sensível e da dosagem da cor, como uma poesia visual; tateia o sublime de cores diáfanas, de azuis profundos em construção silenciosa – o que Mario Pedrosa definiu como “corta-ventos, torres, brinquedos de criança” e nesta profusão de estruturas obedece a um “jogo de aplats mais positivos”.[1]
A escolha da cor se dá pela sua experiência sensível. E nos trabalhos ”quase matemáticos”, “quase geométricos” de construção imprecisa e imprevista, dá evidência aos triângulos de cor, contrapostos a quadrados, castelos ocres, brancos sujos, pretos e lindos azuis, cor do infinito. Aí, ela não radicaliza a alternativa não figurativa de seu espírito essencialmente construtivo, persistente e vibrátil, no qual a sensibilidade da cor e a composição oscilam entre o delimitado e a liberdade, a fronteira e o infinito.
Nas séries Estandartes, Páginas, As Orantes, Os Reinos e As Vestes, em referências místicas à religião, a experiência cromática se impõe à imaginação, à intuição e às formas, em plenos anos 1960. Ela deixa a régua e o compasso e entra na experimentação.